A AUDIÇÃO VIBRÁTORIA
A vibração faz-nos e desfaz-nos, a vibração atravessa-nos, liga-nos. Um sentir com o foco na vibração poderá transformar o modo como vivemos e percebermos o mundo?
No final do século XIX e início do século XX, a investigação científica no campo da física operou mudanças de paradigma radicais no entendimento do espaço, tempo, matéria, energia, vida, morte, consciência e corpo. O fenómeno da vibração esteve no centro destas revoluções em várias frentes: como força invisível transversal a toda a realidade; como nexo da diluição da distinção entre corpo e onda, entre matéria e energia, entre matéria e imaterial; como essência dos pensamentos ou de comunicações pré-verbais; ou, para a religião e o ocultismo, como agregador da alma e do corpo espiritual.
Além das disputas entre a termodinâmica clássica e quântica, ou entre as diferentes vias da psicologia experimental, o conceito de vibração atravessou, igualmente, importantes vanguardas artísticas nas diferentes áreas disciplinares. Encontramo-lo entre os simbolistas, dadaístas, futuristas, no fundamento da narrativa para Joseph Conrad ou nas ondas cerebrais que tocam uma peça do compositor Alvin Lucier.
Ainda assim, poucos serão os que, consciente e consistentemente, tentam abordar a realidade na sua dimensão vibratória, ou perceber sistematicamente o próprio corpo enquanto antena-condutor-transmissor de vibrações — talvez pelas dificuldades impostas pelas nossas limitações percetivas.
A presente exposição de Gil Delindro (1989, Porto) cruza o percurso do artista ao longo de vários anos seguindo uma linha de reflexão sobre o processo de audição vibratória — uma forma de percecionar os sons sem recorrer à sensação auditiva. Esta é uma forma de perceção especialmente desenvolvida por pessoas surdas, ainda que acessível a praticamente todos nós. As obras mais recentes da exposição têm como ponto de partida uma investigação com a Comunidade de Surdos. A utilização de frequências sonoras inaudíveis — os infrassons, é comum à grande maioria das obras, presentes em gravações realizadas, por exemplo, num glaciar nos Alpes.
O interesse de Delindro por eventos naturais extremos enquanto pontos de inflexão em ciclos de criação-destruição levou-o a explorar um mundo sonoro alheio aos nossos ouvidos e difícil de capturar. Nas suas esculturas, as gravações destas paisagens sonoras inaudíveis são transmitidas a outros materiais e objetos que, por um lado, as tornam visíveis e, por outro, produzem, eles próprios, sons audíveis. As esculturas sonoras de Delindro fogem aos códigos factuais interpretativos dos objetos através da ação performativa da pressão sonora que ele injeta nos materiais. Esta energia libertada na reprodução das gravações encontra a essência vibratória vital dos corpos irradiando através deles, movendo-os, esculpindo-os, e invocando simultaneamente um processo de devir partilhado por todos.
Em A Audição Vibratória, Delindro celebra a hipersensibilidade com que as pessoas surdas sentem o mundo sonoro, mas também aponta para um mundo que facilmente ignoramos: um mundo onde as fronteiras entre os corpos se dissolvem; onde conceções binárias tais como animado/inanimado, vida/morte, natureza/tecnologia são desafiadas; um mundo onde encontramos o outro pela ressonância; um mundo aberto a uma poesia vibratória.
Pedro Rocha
Curador da exposição
Gil Delindro é um artista sonoro e visual com amplo reconhecimento internacional.
A sua prática interdisciplinar recorre ao filme documental, instalação e performance, com base na investigação de campo em áreas como a bioacústica, ecologia e geologia.
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